Entrevista: Autor de "Os Próximos 100 Anos" vê futuro mais modesto para o Brasil.
Por Eduardo Graça, para o Valor, de Nova York
Valor Econômico, 23/10/2009
No Texas, agentes americanos fiscalizam a fronteira com o México: "Se os EUA perdessem seus 12 milhões de imigrantes ilegais, a complicação econômica em que se meteria seria enorme", diz Friedman O Brasil não é um dos protagonistas de "Os Próximos 100 Anos - Uma Previsão para o Século XXI", livro do cientista político George Friedman que acaba de chegar às livrarias brasileiras em edição da Best Business. Para ele, os Bric são mais um acrônimo da moda do que possíveis novas potências globais e o poderio americano está apenas em seu alvorecer. Campeão de vendas nos Estados Unidos, "Os Próximos 100 Anos" é um exercício de futurologia escancarado de Friedman. Aqui, o estrategista ignora o senso comum que pauta suas disputadas análises anuais geopolíticas, lidas atentamente tanto no Pentágono quanto em Wall Street, e investe na imaginação. Sempre calcado em dados estatísticos, tendências e fatos históricos, Friedman revela um futuro surpreendente. Um século XXI em que o terrorismo islâmico se arrefece, a China se fragmenta e a Turquia, a Polônia e o Japão surgem como novas potências globais, um patamar abaixo dos EUA. Enquanto a Turquia controlará quase todo Oriente Médio, o México se aproveita de sua posição estratégica, com acesso ao Atlântico Norte e ao Pacífico, para se tornar a maior potência latino-americana, pronto para desafiar os EUA na disputa pelo coração do mundo a partir de 2080. Na bola de cristal de Friedman aparecem ainda o fim de 300 anos de explosão populacional, a valorização do trabalho dos imigrantes e o desenvolvimento de um sistema de energia solar a partir do espaço que eclipsará o petróleo e diminuirá o apelo dos discursos conservacionistas e ambientalistas, assim como de questões como o aquecimento global. Aos 60 anos, com mais de duas décadas passadas na Universidade de Louisiana, Friedman reclama em "Os Próximos 100 Anos" que a análise política convencional sofre de uma profunda falta de imaginação e lembra, profético: "As mudanças que nos levam em direção às novas eras são sempre chocantes, inesperadas". Há 13 anos ele criou a primeira empresa privada de inteligência do planeta, a Stratfor, por ele definida como uma organização noticiosa que usa inteligência, em vez de métodos jornalísticos, para capturar a informação. Em entrevista ao Valor, o consultor de grandes corporações fala dos desafios do Brasil - que, segundo ele, terá um programa espacial relevante por volta de 2060, ainda que "incompleto e desconectado de uma realidade geopolítica importante" - e das surpresas do cenário mundial em um século que apenas começou. Friedman: o Brasil "ainda precisa superar muitos obstáculos até que possa, de fato, alterar o balanço global" Valor: Pelo menos desde os anos 80, com "A Ascensão e Queda das Grandes Potências", do historiador Paul Kennedy, a tese do "mundo pós-americano" é tema constante para a inteligência ocidental. Mais recentemente, a noção ganhou fôlego com o best-seller de Fareed Zakaria. O sr., no entanto, aposta em mais um século americano... George Friedman: O declínio dos EUA vem sendo previsto antes mesmo de sua emergência e depois do Vietnã todos diziam que ele era irreversível. No entanto, desde 1991, com o fim da União Soviética, eles se tornaram a única superpotência mundial. A história não se move tão rapidamente assim, e estamos falando de uma supremacia de apenas duas décadas. A economia americana responde a cerca de 25% de tudo o que é produzido no planeta, sua armada domina todos os oceanos do mundo. É o único grande poder com acesso tanto ao Atlântico quanto ao Pacífico. E, enquanto o Japão tem 364 pessoas por quilômetro quadrado e a Alemanha, 260, os EUA têm apenas 34. Ao contrário dessas duas grandes economias, os EUA seguirão crescendo em termos populacionais durante todo o século. Ou seja, quando você considera os fatos mais importantes na avaliação da força de um país - atividade econômica, poder militar e demografia -, é impossível pensar em outra potência neste século pronta para desalojar os EUA de sua liderança. O declínio, se acontecer, será lento. Valor: Mesmo levando-se em conta o baque na economia americana por causa da atual crise financeira global. Friedman: Há uma tendência em confundir popularidade com poder. Com certeza os EUA se tornaram recentemente mais e mais impopulares, talvez tanto quanto durante a Guerra do Vietnã ou os anos [de Ronald] Reagan. E também há a ilusão de que eventos cíclicos como a atual crise financeira podem ser analisados como grandes mudanças históricas. Admiro Fareed Zakaria, mas discordo quando ele afirma que os chamados Bric [Brasil, Rússia, Índia e China] vão desafiar o poder dos EUA. Esses quatros países têm de crescer estupidamente ao mesmo tempo em que os EUA fiquem estagnados, precisam investir enormemente em seu poderio militar e lidar com problemas sociais gigantescos que os EUA simplesmente não têm. Como é que a Rússia vai resolver seu problema demográfico? E China e Índia, como vencerão a pobreza? E o Brasil, como é que vai superar os revezes da própria localização geográfica e desenvolver Forças Armadas de peso ao mesmo tempo? Valor: O sr. não crê em um mundo multipolar no século XXI? Friedman: Minha visão é de que o mundo é sempre multipolar. O que muda são as forças relativas nos dois extremos. Está na moda a ideia dos Bric, mas Brasil, Rússia, Índia e China são países em condições diferentes de crescimento, em estágios de desenvolvimento singulares, com posições diversas no cenário mundial. A Rússia não pode ser comparada a nenhum dos outros Bric. Ela é hoje uma grande exportadora de matéria-prima, não uma potência industrial. Já a China, bem, é um país com muitas faces. Mais de 600 milhões de chineses têm um ganho familiar entre US$ 1 mil e US$ 2 mil por ano. Apenas 60 milhões de 1,3 bilhões de chineses chegam a US$ 20 mil/ano, computando o salário de toda uma família. Mais de 1 bilhão de chineses vivem na mais extrema forma de pobreza. Uma situação semelhante à da Índia, mas aqui temos de levar em conta os vastos problemas de infraestrutura que tornam o desenvolvimento inviável na China. Valor: Em "Os Próximos 100 Anos" o sr. chega a prever a desintegração do país e um papel menor no cenário mundial para Pequim. Friedman: A China é uma ilha. Ao Sul, montanhas e florestas. No Sudeste, o Himalaia. No Nordeste, o infinito das estepes. E no Norte, bem, no Norte há a Sibéria. Suas Forças Armadas são voltadas para a segurança interna e sua Marinha nem sequer existe propriamente. Há três características para um poder global: o dinamismo da economia, a estabilidade social e o poderio militar. A China conta com uma economia dinâmica, mas sua estabilidade social é comprometida por profundas divisões internas e suas Forças Armadas não são moldadas para exercer o poder em projeção global. Não creio que a China possa ser um poder global. E acredito que os chineses, que sabem bem de suas características e peculiaridades, já escolheram não ser este poder global. Valor: O sr. também vê a decadência da Comunidade Europeia. Os europeus, o sr. escreve, lembram os EUA de antes da Guerra Civil. Pode explicar melhor essa comparação? Friedman: Durante a crise financeira global, a Comunidade Europeia não usou Bruxelas para atacar seus problemas econômicos. Eles foram resolvidos, de forma independente, a partir das capitais de cada país membro. Os alemães não quiseram usar seu dinheiro para salvar bancos irlandeses. A crise serviu para descobrirmos de fato os limites de poder desta instituição chamada Comunidade Europeia. Era assim com os EUA, concebido como uma federação de Estados soberanos, até que os sulistas decidiram se separar da União em 1861. Foi somente depois da guerra, terrível, que a unidade dos EUA foi assegurada. Quem é que estaria preparado para lutar na Europa se a Itália, por exemplo, decidisse sair da União Europeia? Não há Exército comum, não há sequer uma moeda única, com alguns países adotando o euro e outros não. O Mercosul, por exemplo, é uma ideia interessante, desde que se entenda que o Brasil, que fala português e tem uma rica e particular história, vive uma realidade completamente diferente das circunstâncias da Argentina. Tentar criar uma potência que englobe Brasília e Buenos Aires é tão improvável como imaginar uma única Europa. Valor: Já que falamos da América Latina, uma de suas previsões é a de uma guerra entre EUA e México na sua zona de fronteira, provocada pela imigração em massa, que transformará o sudoeste americano em área de população majoritariamente hispânica. Esse será o tendão de Aquiles dos EUA no século XXI? Friedman: O problema da imigração ilegal é simples: neste momento os dois países precisam e querem esse fluxo de trabalhadores. Se os EUA perdessem esses 12 milhões de imigrantes ilegais, a complicação econômica em que se meteria seria enorme. Por sua vez, o México precisa do dinheiro enviado pelos trabalhadores vivendo nos EUA. Mas, especialmente para os americanos, essa é uma verdade extremamente impopular. Somente quando o jogo demográfico virar - e os EUA precisarem mais e mais de imigrantes - é que os dois países agirão de fato. Em um mundo onde a escassez de trabalhadores será a regra, e com a economia mexicana produzindo ofertas de trabalho suficientes para sua população, os EUA vão procurar desesperadamente por trabalhadores nos quatro cantos do planeta. Valor: O sr. acredita que o México vai mesmo superar o Brasil neste século como maior economia latino-americana? Friedman: O Brasil também é uma ilha, separada por florestas, montanhas e oceanos do resto da América Latina, com uma pequena ponte natural em direção ao Uruguai e à Argentina. O país está crescendo a uma velocidade tremenda, mas segue isolado como poder global e regional, embora não haja dúvida de que é um país importante e sua relevância só tende a aumentar, mas ainda precisa superar muitos obstáculos até que possa, de fato, alterar o balanço global. Valor: Uma das razões pela qual o Brasil cresce é a necessidade de alimentar o planeta. Mas a revolução agrícola pode ter menos importância neste século se chegarmos à estabilidade demográfica sugerida em seu livro. Friedman: Essa tendência não será modificada em curto prazo. A população global seguirá crescendo até o fim do século XXI, mas com velocidade progressivamente menor. Projeto que o Brasil, no fim do século, terá desenvolvido sua economia de modo ainda mais diversificado. A revolução da agricultura brasileira foi a alavanca do crescimento do país, mas não será seu sustentáculo. O Brasil vai crescer muito neste século e se diversificar ainda mais. Valor: Em "Os Próximos 100 Anos" o sr. deixou de lado o aquecimento global. Aposta que o fim da explosão populacional e a exploração de fontes de energias alternativas vão resolver o problema. O discurso conservacionista, que margeia a discussão do desenvolvimento sustentável da Amazônia, por exemplo, seria, em sua visão, menos importante do que a busca incessante por novas fontes de energia? Friedman: Não acredito que o conservacionismo possa resolver nossos problemas. Não é razoável pedir que se reduza o processo de industrialização do planeta. Os países mais avançados não vão reduzir suas emissões de gás carbônico à custa da redução de seu padrão social e é fantasioso acreditar na possibilidade da diminuição do consumo em escala global. O discurso conservacionista parte da premissa de que haveria uma mudança radical do estilo de vida das populações. Veja bem: ir de bicicleta para o trabalho não fará diferença alguma. O que precisamos é buscar fontes de energia avançadas, que não sejam baseadas em hidrocarbonetos, como o petróleo. Valor: E o sr. aposta na energia solar... Friedman: Sim, creio que essa nova fonte de energia será solar, mas gerada no espaço, pois do contrário teríamos de reservar vastas áreas do planeta apenas para os painéis solares, o que seria um desastre ecológico. Um consórcio japonês liderado pela Mitsubishi já começou a desenvolver essa ideia e o investimento impressiona. Nos EUA, a Nasa também tem um projeto nessa direção. Aposto que em 50 anos já enxergaremos a solução: energia solar baseada no espaço.
COMENTÁRIOS
(baseados somente, e somente, na entrevista, e não no livro de Friedman)
1) Embora falar da situação da superpotência norte-americana no século XXI seja um exercício futurológico, há indícios consistentes de que a posição internacional do país sofrerá deslocamentos vis-à-vis às grandes e médias potências. De acordo com a tese do historiador Paul Kennedy, autor do clássico Ascensão e queda das grandes potências e que é citado na matéria acima, a hipertrofia do setor militar (isto é, expressivos gastos em armamentos em relação ao PIB) é uma evidência que aponta para o esgotamento do modelo hegemônico da potência mundial em questão (KENNEDY, 1991). No caso dos EUA, isso é particularmente flagrante, uma vez que o país investiu mais de US$ 607 bilhões em defesa em 2008, 41,5% do total mundial gasto no mesmo ano (SIPRI, 2009, online) e cerca de 4,3% do PIB do país. Washington ainda terá de equacionar outros problemas estruturais que podem afetar a sua trajetória enquanto poder global, como os seus déficits gêmeos (déficit fiscal e déficit em conta corrente), a credibilidade do dólar enquanto moeda internacional, entre outros.
Em resumo, o que se argumenta aqui não é o eclipse dos EUA enquanto potência, mas sim a perda relativa de seu poder e influência perante outros Estados em franca emergência no cenário global nas próximas décadas. Em outras palavras, isto quer dizer que, muito provavalmente, o sistema internacional multipolar do século XXI não permitirá que Washington exerça o tipo de hegemonia inconteste que experimentou no imediato pós-1945 ou na primeira década pós-Guerra Fria.
2) As afirmações de Friedman sobre a Marinha da China são, no mínimo, discutíveis. Gradualmente, a força naval de Pequim tende a expandir a sua cobertura geográfica. Hoje, belonaves chinesas patrulham o Golfo de Aden a fim de proteger os navios comerciais do país das incursões de piratas somalis. Ademais, de acordo com o estudo elaborado pelo perito naval Ronald O'Rourke ao Congresso dos EUA, os objetivos a longo prazo da Marinha chinesa (isto é, aqueles a serem atingidos durante o século XXI) são, entre outros, os de proteger as linhas marítimas de comunicação da China com o Golfo Pérsico (de onde provém parte das importações chinesas de petróleo) e garantir o estatuto da China como grande potência mundial, encorajando seus vizinhos a se alinhar com Pequim e, assim, diminuindo a influência militar dos EUA no Pacífico (O'ROURKE, 2009).
Seguindo o raciocínio de Friedman, a China pode até ser uma "ilha" em termos geográficos, mas está integrada economicamente à maioria de seus vizinhos asiáticos, detalhe que Friedman parece esquecer. Neste contexto, Pequim já possui uma profunda interdependência econômica com Taiwan -- que, no discurso político, é tratada como uma província rebelde --, com quem intercambia mercadorias e investimentos. Há um nítido spillover do fantástico crescimento econômico da China para os países vizinhos, devido a fatores como a proximidade ao mercado chinês e a mão-de-obra mais barata. Dentro desse spillover, já se percebe a tendência chinesa de transferir para países como o Vietnã atividades econômicas de baixo valor agregado, como a produção têxtil e de brinquedos -- os mesmos produtos que fizeram a fama mundial da China como exportador de "bugigangas" nos anos 1970 aos 1990 --, enquanto que Pequim se especializa em atividades altamente intensivas em capital, como a indústria eletrônica, aeroespacial e de informática.
3) George Friedman demonstra na entrevista uma posição conservadora em relação à mudança climática e ao aquecimento global. Apesar de os temas ambientais não serem a minha especialidade, devo dizer que o otimismo de Friedman com relação à conversão da matriz energética mundial, hoje dependente do hidrocarboneto, em direção a fontes renováveis tem certo fundamento se analisarmos os projetos em andamento. No entanto, a implementação de tais projetos em escala comercial e a diminuição da dependência energética do hidrocarboneto ainda levarão décadas para se tornarem a tendência dominante, o que nos obriga a encarar a mudança climática como um tema extremamente urgente da agenda internacional.
REFERÊNCIAS:
KENNEDY, Paul. Ascensão e queda das grandes potências. Rio de Janeiro: Campus, 1991.
O'ROURKE, Ronald. China Naval Modernization: Implications for U.S. Navy Capabilities—Background and Issues for Congress. 23 set. 2009. Disponível em:
SIPRI (org.). SIPRI Yearbook 2009. 2009. Disponível em:
Crédito da Foto: Stratfor.
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