Os ataques de piratas a embarcações de diversas nacionalidades na costa da Somália, a ressurgência do Talibã no Afeganistão e no Paquistão e a atuação da força de paz das Nações Unidas no Haiti são temas que frequentam os noticiários internacionais dos principais veículos de imprensa do mundo. Todos eles têm mais um ponto em comum: são as mais recentes manifestações do processo de fragilização estatal, redundando eventualmente no surgimento de Estados fracassados.
O fenômeno dos Estados fracassados passou a receber atenção da academia em meados dos anos 1980, com o artigo Why Africa’s Weak States Persist: the Empirical and the Juridical in Statehood (1982) e o livro Quasi-states: sovereignty, international relations and the Third World (1990), ambos de autoria de Robert Jackson, seguidos do artigo Saving failed states (1992), de Gerald Helman e Steven Ratner (ALEXANDRINO, 2008, p.1).
O fim da Guerra Fria agravou a problemática em torno dos Estados fracassados, por uma série de fatores: muitos Estados deixaram de ter a sua economia e seu aparato de segurança financiados por uma das duas superpotências; a legitimidade de muitos deles acabou sendo erodida devido à sua incapacidade de solucionar problemas como a miséria, o desemprego e a criminalidade; e os anos 1990 viram a ascensão (ou o recrudescimento) de rivalidades étnicas e de movimentos separatistas que não existiam ou estavam suspensos durante a Guerra Fria, fazendo com que os alinhamentos políticos deixassem de se pautar em termos ideológicos (como ocorria na Guerra Fria) e passassem a adquirir um matiz predominantemente étnico-nacionalista (QUADROS, p.85 in PENNAFORTE, 2008).
Ademais, os profundos deslocamentos geopolíticos ocorridos na época representaram a quarta onda de criação de Estados no sistema internacional nos últimos duzentos anos (CARMENT, 2003, p.411) . Com efeito, mais de vinte Estados foram criados na Europa Oriental e na Ásia, muitos deles sem qualquer precedente histórico, deixando a impressão de que a autodeterminação inesperadamente “caiu no colo” de diversos povos, conforme observa de forma perspicaz Michael Ignatieff (apud CARMENT, 2003, p.407): “[…] huge sections of the world’s population have won the right of self determination on the cruelest possible terms: they have been simply left to fend for themselves. Not surprisingly, their nation-states are collapsing” .
Durante os anos 1990, o fracasso de Estados era considerado predominantemente como um tema humanitário, pois estava relacionado com problemas como a escassez de alimentos, a proliferação de doenças e o crescimento no número de refugiados, motivando intervenções da comunidade internacional em locais como a Somália (a partir de 1992), o Haiti (a partir de 1993) e Serra Leoa (a partir de 1998). Os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001 aos Estados Unidos adicionaram uma dimensão securitária à questão dos Estados fracassados, que passou a se tornar extremamente importante na agenda internacional do início do século XXI. A partir desse momento, o fracasso estatal passou a ser apontado como o foco de atividades desestabilizadoras para o sistema internacional, como o terrorismo, a proliferação de armas de destruição em massa, o narcotráfico e a atuação de máfias e organizações criminosas. Diante disso, a chamada Doutrina Bush identificou os Estados fracassados como a principal ameaça aos EUA, pois, na visão do governo norte-americano, eles eram considerados como o ambiente ideal para o desenvolvimento de redes terroristas.
Em 2002, a National Security Strategy, documento que delineia as metas estratégicas do governo norte-americano, declarou de forma inequívoca que a “America is now threatened less by conquering states than we are by failing ones. We are menaced less by fleets and armies than by catastrophic technologies in the hands of the embittered few” (THE WHITE HOUSE, 2002, p.1). Com efeito, a tendência apontada por Washington constitui a essência do fenômeno dos Estados fracassados, que reside em um fato incomum na história do sistema internacional: a segurança coletiva deixou de ser ameaçada pela rivalidade entre Estados com excesso de poder, passando a ser posta em xeque pelo vácuo de poder em determinados Estados (QUADROS, p.85 in PENNAFORTE, 2008). Em outras palavras, enquanto a maior parte da história das relações internacionais foi a história de conflitos entre Estados com projetos expansionistas concorrentes, hoje se percebe que o fracasso estatal (entendido aqui como a persistência de Estados sem meios de reproduzir as condições para a sua própria sobrevivência) também pode trazer instabilidade no âmbito local, regional e global.
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Também deve ser apontada a escassez de análises da academia brasileira sobre o tema; e os poucos estudos que já existem adotam abordagens diferentes. Gisele Novas do Nascimento (2008, p.149-162) disserta sobre a possibilidade de organizações terroristas adquirirem armas de destruição em massa a partir de Estados fracassados, mas restringe sua análise ao mundo muçulmano. Carlos Alberto Pinto Silva (2007) relaciona a existência dos Estados fracassados com a ascensão de conflitos assimétricos no contexto sul-americano. Fabrício Alexandrino (2008) revisita os princípios que embasam o debate sobre os Estados fracassados e se debruça sobre a noção de construção de Estados (state-building), com base nas ideias de Francis Fukuyama. Bruno Quadros e Quadros (in PENNAFORTE, 2008) traça elementos preliminares para o exame dos efeitos dos Estados fracassados para o Brasil. Leandro Nogueira Monteiro (2006) é autor de um dos estudos mais completos sobre o assunto no Brasil, centrado no processo de construção do conceito de Estado fracassado e suas implicações para a Teoria das Relações Internacionais.
O texto acima é um trecho do artigo Os "Estados fracassados" sob uma visão brasileira: conceituação e elementos para a análise de seus desdobramentos securitários, que apresentei na Conferência Internacional Conjunta ISA-ABRI - "Diversidade e desigualdade na política mundial", realizada na PUC-Rio, no Rio de Janeiro, entre 22 e 24 de julho de 2009. Quem tiver interesse em ler o artigo na íntegra, clique aqui.
* Crédito da foto: Getty Images.
4 comentários:
Muito bom o artigo e, realmente, trás novos ares para a análise da política externa numa interpretação criativa dessa "quarta onda" que, sem dúvida, ainda deixa um grande desafio para os analistas internacionais.
Aparentemente, o link para abrir o artigo completo não está funcionando. Quem tiver interesse em lê-lo, favor enviar e-mail para bquadrosequadros@gmail.com
Parabéns pelo BLOG!
=)
EDUARDO DANTAS
João Pessoa - PB - BRASIL
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